Arranjos de cordas na música mainstream: como é que instrumentos com 500 anos de história se mantém atuais?
Os instrumentos de cordas friccionadas, como violinos, violas de arco, violoncelos e contrabaixos, têm mais de 500 anos de história. Apesar da sua origem na música dita "clássica", e de terem sido veículo de criatividade durante séculos para grandes compositores como Mozart, Beethoven, Brahms, Tchaikovsky, Debussy, entre tantos outros, estes instrumentos são utilizados de forma recorrente no universo da música mainstream. Desde os primórdios da indústria discográfica até aos dias de hoje, os arranjos de cordas têm sido utilizados de forma eficaz, trazendo intemporalidade às canções contemporâneas. O compositor Rui Ribeiro, com vasta experiência na criação destes arranjos de cordas, partilha a sua perspetiva sobre como esses instrumentos ancestrais continuam a acrescentar valor à música atual.
Rui Ribeiro começa por destacar que as cordas têm sido uma presença constante na música mainstream desde o início da indústria discográfica: “De forma subtil ou evidente, os arranjos de cordas estão presentes em muitas das grandes canções da história da música mainstream, desempenhando funções distintas que enriquecem a composição,” explica. "Não há como negar a relevância das cordas em sucessos de diferentes géneros musicais. Por exemplo, não conseguimos dissociar 'Bittersweet Symphony', dos The Verve, do icónico e constante arranjo de cordas, nem separar 'Stand by Me', de Ben E. King, da sua maravilhosa melodia de cordas. Uma canção como 'Cosmic Girl', dos Jamiroquai, não seria a mesma sem o ritmo, as contra-melodias e o timbre das cordas, e até 'Toxic', de Britney Spears, perderia parte da sua força sem o famoso 'gancho' embriagado das cordas, ainda que o mesmo venha de uma canção de Bollywood!" comenta. Rui também observa que, até no fenómeno isolado de Portugal vencer o Festival da Eurovisão com a eterna 'Amar Pelos Dois', interpretada por Salvador Sobral e escrita pela irmã Luísa Sobral, "há um arranjo de cordas incrível logo no início da canção, escrito brilhantemente pelo Luís Figueiredo, que é, diria eu, uma parte muitíssimo importante, se não mesmo essencial da mesma. Admiro muito a coragem de arrancar a canção, num palco onde se procura impressionar mais frequentemente pelo explosivo, com aqueles 20 segundos de arranjo de cordas isoladas, que só prova o quão intemporal estes instrumentos são."
Rui partilha uma história curiosa sobre a produção de 'Don't Stop 'Til You Get Enough' de Michael Jackson que tem, como muitos se lembrarão, um arranjo de cordas proeminente: “Aparentemente, Michael Jackson teria dito a Quincy Jones, que estava a produzir a canção, para tirar as cordas dali, porque não queria violinos que, no seu entender eram instrumentos antigos e datados, e que iriam cortar a vibe da canção. Quincy Jones não lhe deu ouvidos e insistiu que aquele motivo nas cordas era parte essencial da canção. Mais tarde, já no processo de mistura, Michael Jackson acabou por dar razão a Quincy Jones e admitir que estava errado. A verdade é que, se removermos aquele motivo das cordas da canção... parece que a mesma perde aquela identidade especial e torna-se muito mais comum. Isto não é, posso garantir, um episódio isolado, e é apenas um exemplo de como a estes instrumentos, com 500 anos de idade, se conseguem integrar de forma admirável em algo moderno."
Se esta história curiosa remonta a 1979, não significa que a utilização de arranjos de cordas em canções estivesse mais em voga naquela altura do que hoje; Rui Ribeiro prossegue com um exemplo contemporâneo: "O mais recente disco da Billie Eilish, 'Hit Me Hard and Soft', lançado neste ano de 2024 e que atingiu recentemente o número um mundial de streams nas plataformas digitais de música, tem uma presença essencial e de elevadíssima importância de arranjos de cordas. Aliás, as notas que encerram o álbum na última faixa 'Blue', são executadas, adivinhe-se, pela secção de cordas, a concluirem uma secção em que têm grande destaque, e onde estão praticamente isoladas."
Rui Ribeiro sempre teve um contacto muito próximo com instrumentos de corda friccionada e explica: “Talvez devido à minha formação académica clássica, sempre estive em contato íntimo com esses instrumentos, que constituem uma secção fundamental da orquestra sinfónica ocidental. Enquanto estudante, aprofundei áreas como a orquestração e a direção de orquestra, e, naturalmente, a secção de cordas exigiu uma dedicação especial da minha parte. Por coincidência, também tive a felicidade de ter algumas namoradas que tocavam violino e violoncelo no passado e, embora isso possa parecer irrelevante, ajudou-me a compreender o lado humano por trás desses instrumentos, os seus desafios, segredos e idiossincrasias. Eu próprio toquei viola de arco durante algum tempo, não com o intuito de me tornar um instrumentista profissional, mas para entender melhor a técnica desses instrumentos de corda friccionada, que seguem um princípio comum. Sempre que dirijo uma orquestra, procuro aprender mais sobre como esses instrumentos funcionam em conjunto e quais os desafios que enfrentam. Considero estes instrumentos incrivelmente expressivos e versáteis, transcendendo fronteiras físicas e culturais. Podemos, por exemplo, encontrar um violinista a tocar a Chaconne de Bach na Alemanha, uma gig celta na Irlanda ou na Escócia, música country ou blues nos Estados Unidos, ou música cigana na Roménia ou na Hungria, entre muitos outros exemplos. Em todos os casos, tratam-se de uma extensão emocional e expressiva, funcionando quase como uma segunda voz para a expressão humana. A expressividade e versatilidade destes instrumentos é o que os torna especiais e, como referi, altamente adaptáveis às mudanças e ao teste do tempo, talvez mais do que qualquer outro instrumento, à exceção, é claro, da voz humana.”
Durante o seu trabalho, tanto como compositor, arranjador ou produtor, Rui Ribeiro incorporou arranjos de cordas em inúmeras canções de diversos artistas. "Sempre quis introduzir instrumentos de corda friccionada nas canções que compus, assim como escrever arranjos de cordas para canções de outros artistas com quem colaborei como arranjador ou produtor. Tive a felicidade de o poder fazer recorrentemente ao longo das últimas décadas, apesar da resistência ocasional por parte dos artistas, managers ou editoras devido aos óbvios custos envolvidos. Gravar, por exemplo, um ensemble de 24 instrumentistas de corda não é barato, embora valha cada cêntimo!" Rui observa também que, por vezes, o fator económico desempenha um papel relevante na decisão de criar arranjos de cordas para canções: "Em Portugal, estes arranjos têm mais probabilidade de serem aceites, por razões económicas, quando são executados por grupos menores, como um quarteto de cordas. Quando compus 'Busy (for me)' para a Aurea, por exemplo, a canção não pedia um arranjo de cordas denso; o que eu pretendia era algo mais frágil, em linha com a narrativa da letra, mas com bastante emotividade... daí não ter hesitado em gravar com um quarteto de cordas, o que foi, naturalmente, recebido em 2009 durante a produção do primeiro disco da Aurea, que na altura era uma artista desconhecida e, consequentemente, tinha um orçamento muito modesto. No final, ao ouvir a música finalizada, todos os intervenientes sentiram que foi a opção certa, e que a incorporação do arranjo para quarteto de cordas trouxe uma camada adicional de expressividade e cor. No caso da Aurea, que se tornou uma das principais artistas portuguesas nos anos seguintes, a presença de arranjos de cordas foi uma constante nos discos seguintes, como em canções como 'Nothing Left to Say', que ajudou a criar um ambiente mais dramático e expressivo, ou 'Like a Sheet of Coated Paper', que contribuiu para o ambiente estático e suave do trip-hop dos anos 90. Um arranjo de cordas pode funcionar como uma paleta de cores para colorir uma canção, e um bom exemplo disso são os arranjos que escrevi para algumas canções dos The Happy Mess, como 'Sol da Toscânia' ou 'Dançar no Escuro', com uma abordagem quase reminiscente do impressionismo. Esses arranjos adicionam uma dimensão emocional extra... podem trazer doçura e delicadeza, como o arranjo de cordas que criei para a canção 'Boa Noite' da Nena, profundidade emocional, como o arranjo para o 'Fósforo' da Ana Bacalhau, ou um toque de ternura, como no arranjo para a canção 'Natal Mais Uma Vez' da Luísa Sobral... e é sempre para mim um enorme prazer poder escrever estes arranjos!"
Rui Ribeiro conclui que, apesar das mudanças constantes no panorama musical, as cordas continuarão a ter um papel relevante. “Creio que os arranjos de cordas na música mainstream estão para ficar. Desde as maiores produções até aos momentos mais intimistas de artistas de distintos quadrantes, as cordas conferem uma profundidade emocional que é difícil de replicar com outros instrumentos.” Rui acredita que a longevidade das cordas no mainstream se deve à sua capacidade de criar uma ligação emocional imediata com o ouvinte, transportando a música para uma nova dimensão. “A fusão entre o clássico e o moderno é natural, e a prova disso está nos muitos álbuns de sucesso que continuam a explorar esta sonoridade. Acredito que a música mainstream pode evoluir de várias formas, mas os arranjos de cordas terão sempre um lugar especial, conferindo às canções uma qualidade intemporal que resiste ao teste do tempo.”
Equipa Rui Ribeiro